Numa semana em que se soube do desaparecimento daquele que foi um dos grandes pilotos portugueses de todos os tempos, a TURBO faz questão de homenagear Joaquim Santos, recuperando um artigo, não só sobre o piloto de Penafiel, mas também sobre a equipa privada de maior sucesso nos ralis nacionais: a Diabolique. Lembra-se?… Na paz do fim-de-semana, este é um artigo para saborear, lendo demoradamente…
O momento foram os 25 anos sobre o fim de um dos grandes projectos nacionais para os ralis e que, embora desaparecido já muitos mais, estamos certos que ainda perdura na memória dos verdadeiros aficcionados nacionais de ralis. Sendo que, na conversa, feita também a uma mesa que transbordou de recordações, estiveram não apenas o já saudoso "Quim" Santos, como vários outros nomes que ajudaram a fazer a Diabolique - Miguel Oliveira, Joaquim Bessa, José Leite, e muitos outros.
Com o republicar deste artigo, sem quaisquer alterações ou adaptações, e numa altura particularmente tristes para todos os aficcionados do desporto automóvel, a TURBO junta-se, assim, a todos os que nunca esqueceram este verdadeiro e apaixonado grupo de "diabólicos"…
"Vinte e cinco anos após o seu encerramento, a equipa privada de maior sucesso dos ralis nacionais continua bem viva no imaginário dos fanáticos pelas corridas. Celebramo-la com uma visita e jantar exclusivos, tudo para que possa recordar os feitos de um grupo de diabólicos.
Duas viagens. Dois momentos que, pela importância dos intervenientes e pela paixão partilhada, ficarão eternamente registados na nossa memória. O primeiro é um jantar, um repasto único e especial com os homens que forjaram a história da Diabolique, mas também com um dos inúmeros adeptos que, pese o seu encerramento, não pouparam esforços na missão de perpetuá-la para lá da cronologia. O segundo tem sabor espanhol e assume caráter museológico, traduzindo-se numa visita ao refúgio do BT-56-16, o primeiro carro de Joaquim Santos ao serviço da estrutura liderada pelo patrão, co-piloto e amigo Miguel Oliveira. Em 1981, "Quim" Santos, ladeado por Luís Alegria, fazia no Rali Rota do Sol a sua estreia ao volante do Ford Escort RS 2000 pintado no branco, vermelho e dourado inconfundível da Diabolique – a mesma máquina com que o espanhol Rafael Cid e Miguel Oliveira tinham subido ao lugar mais baixo do pódio no Rali das Camélias desse ano e terminado no 7º lugar a mais emblemática das provas nacionais, o Rali de Portugal/Vinho do Porto. Se para os fãs incondicionais do tetra-campeão nacional de ralis e da equipa privada de maior sucesso em Portugal este é um automóvel precioso, esse sentimento também se aplica aos dois empresários espanhóis que o adquiriram, em 2007, a Fernando Santos. Neste caso, pela simbólica ligação com o automobilismo do seu país. Mas também – veja bem – pelas recordações de infância de quem viu "Rafa" e a Diabolique em provas da Península Ibérica.
Vivo há 30 anos
O efeito de contágio é transversal e vem atestar uma realidade que foi crescendo com o passar do tempo: por mais estranho que isso lhe possa parecer, a Diabolique, hoje, é o somatório do contributo de várias pessoas. Não é apenas de Miguel Oliveira, nem de Joaquim Santos, nem de Joaquim Bessa, nem de José Leite, embora todos eles tivessem estado no jantar que, anualmente, reúne os pais fundadores num restaurante de Matosinhos. Também não é de Fernando Coelho, o "indefectível fã", nas palavras do seu incontornável criador, que sabe com a rapidez e precisão de um disco rígido todos os resultados da equipa. E também não é de Julio Alvarez e de Francisco Alonso, os atuais proprietários do BT-56-16. A Diabolique é, assim, de todos e de ninguém – transfigurou-se numa espécie de seita religiosa cuja liderança é partilhada por aqueles que, quase 25 anos após o seu desaparecimento, ainda acreditam que é possível correr pela paixão de correr, sem ser necessário outro motivo para além desse.
Não deixa de ser curioso que o nome do restaurante escolhido para celebrar o encontro da Diabolique ("Segunda Casa") personifique também a forma como fomos recebidos em Ourense, a localidade galega onde se esconde o Ford Escort RS 2000 que passou pelas mãos de Rafael Cid, Joaquim Santos e Rui Souto. Se à mesa se recordaram as lutas com Santinho Mendes ou Joaquim Moutinho, as etapas favoritas ou "aquela vitória em Castelo Branco, ao longo de 70 km, no troço mais longo de um rali em Portugal", em Espanha fez-se continência a essa forma de estar ímpar que contaminou os fãs do desporto na década de 1980. Julio e Francisco podem não ser portugueses, mas sentem as cores da equipa com o mesmo fervor de qualquer lusitano. Desde logo por estas declarações que explicam o que os levou a comprar o BT-56-16: "Na nossa opinião, o valor não passa pelo carro em si, mas sim pela história que tem por trás", avançam. Daí terem procurado mantê-lo o mais original possível: "Num restauro essa história perde-se, por isso demos-lhe apenas o que ele tinha perdido pelo caminho. Fizemo-lo pela sua imagem da Diabolique, recuperando os elementos que tinham sido modificados ao longo dos anos. Agora é um automóvel de época. Sentas-te nele e vês um carro com o envelhecimento natural de quem está vivo há 30 anos".
Difícil de explicar
Além de preservarem o passado glorioso do modelo (só as bacquets e os cintos escapam ao rigor por questões de segurança, mas nesta garagem secreta é possível ler confortavelmente uma revista sentado nos bancos originais), Julio e Francisco são também precursores da filosofia que tanta fama e adeptos reuniu junto da Diabolique. Correm sem quaisquer patrocinadores e tal como o pioneiro Miguel Oliveira deixam para quem sabe a arte de escorregar a traseira ao longo de uma sucessão de curvas. O felizardo é um piloto e mecânico espanhol encarregue não só de conduzi-lo, mas também de preparar o Ford Escort RS 2000 antes das provas – um processo sempre supervisionado por um dos seus proprietários, acrescenta Julio, até porque são os únicos que podem transportá-lo no reboque que também recebeu as cores da Diabolique. "Eu penso que o Miguel e eu temos o mesmo problema – somos muito competitivos. Quando tens toda uma infra-estrutura montada tens desejo de fazer bem as coisas. E se vês que quem falha é quem vai ao volante tens que ocupar umas funções que são semelhantes à tua forma de ser ou estão mais ajustadas às tuas capacidades. Daí ter-me sempre parecido natural dar oportunidade a outras pessoas que ainda por cima demonstraram, no seu momento, que são bons pilotos e que também têm uma paixão sobre o desporto e esta forma de fazer as coisas. Porque também é muito difícil dizer hoje a alguém: 'Tens este carro e tal como está. Não me peças que te ponha uma direção assistida porque não ta vou meter, nem que te coloque umas portas em fibra ou um capot de carbono. Este é o carro e tu tens que te adaptar a ele, manter a sua história e seguir alargando-a. Fazê-la crescer. Eu vou ajudar-te com o carro. Gosto muito de manter a sua história e por isso não quero perder o espírito que sempre existiu ao redor dele. E se depois se fazem coisas distintas às quais se pode manter a imagem da Diabolique, então muito bem'".
Apesar de não conduzirem o carro, Julio e Francisco têm vindo a inscrever o BT-56-16 em "quatro/cinco provas por ano", assegurando, pelo caminho, que nada lhe falta quando sai à rua. São livres. Vivem com a forma mais pura e fortuita de fazer corridas – a despreocupação de quem não depende de apoios a não ser os oriundos da sua própria motivação. Não são muitos os que o podem fazer, é certo. Mas, do mesmo modo, nem todos se manteriam fiéis à convicção de que esta é a única forma de respeitar o legado da Diabolique e de prolongar os pergaminhos de uma história omnipresente, cujo espírito permanece bem vivo. O motivo? "Difícil de explicar", como em todas as paixões que prezam esse nome: "Não há um porquê. Nem o sabemos. Se procuras um porquê é porque acreditas que há uma razão por trás. Isto é totalmente irracional. Não sabes porque o fazes. Mas fazes, vês os resultados, retiras satisfação e conheces pessoas", conta Julio, acrescentando ainda que, quando era miúdo e via os carros a correr, nunca lhe passou pela cabeça que "um dia ia poder estar à mesa com o Dr. Miguel Oliveira, com o Joaquim Santos", partilhando estas histórias. "Ter o carro facilitou essa ligação, claro. Eles interessam-se e quando dás por ti já estás sentado com eles. Mas o que me estranha é que se dê valor a isto – nós encontrarmos o carro e recuperá-lo e chamarem-nos de loucos – quando na verdade eles é que tinham valor. O louco realmente era o Miguel Oliveira. Quem montou a estrutura, quem gerou algo em redor de uma marca que não existia foi ele, não nós".
Aguçar o apetite
São 20h15m. Quinze minutos antes da hora marcada, Miguel Oliveira apresenta-se no restaurante na companhia do filho, Miguel Pedro Oliveira, e do amigo e fã da Diabolique, Fernando Coelho. Pouco depois chegam Joaquim "Kikas" Bessa, antigo diretor desportivo, José Leite, antigo chefe dos mecânicos, e ainda o pilotaço Joaquim Santos, com a trupe a completar-se com Irino Pereira e Artur Bastos, dois dos fiéis mecânicos da equipa. O momento é histórico, não há volta a dar. Pela reunião e, claro, pelo convite endereçado. Mas convém não esquecer que este é sobretudo um jantar de amigos. Fala-se de futebol (no Estádio do Bessa jogavam Boavista e Sporting), das famílias, dos encontros que se tiveram e das novidades, antes de a conversa fluir, então, ou não fossem todos decanos das corridas, para os triunfos, as desilusões, as peripécias e as memórias. Neste particular, Joaquim Bessa revela uma agilidade mental impressionante, ao contrário de Joaquim Santos, que admite estar esquecido de muitas coisas. Compensa-o com a sua enorme simpatia, tal como os restantes convidados, enquanto Miguel Oliveira revela a cordialidade e gentileza próprias de um cavalheiro britânico, não tivesse sido ele campeão de bridge na juventude, seja pela forma como responde à nossa curiosidade, seja pelo modo paternalista em que insiste para comermos ("Ó meninos, sirvam-se senão a certa altura…") as diversas iguarias que nos são apresentadas. "O cabritinho assado que é muito nortenho, muito bom" é um ótimo exemplo.
[https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_1.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_3.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_6.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_7.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_4.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_8.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_2.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DIABOLIQUERS2000_5.jpg]É natural que uma equipa tão emblemática como a Diabolique seja continuamente escrutinada. Assim foi no ativo e assim é nas dezenas de fóruns que retratam os ralis em Portugal e o seu palmarés invejável. Mas queremos acreditar que existem coisas que ainda não foram descobertas. Que existem segredos por revelar e que este jantar serviu para que os pudéssemos desconstruir em bocadinhos preciosos que agora serão partilhados consigo. Sabia, por exemplo, que Remédios/Portões vermelhos, nos Açores ("Começava mal, passava a asfalto e depois começava a subir estreito… Eu quase que ainda o faço sozinho") é o troço favorito de Miguel Oliveira? Que o Eduardo Maia Pinto e "a sua mulher francesa" são os responsáveis pelo nome Diabolique e que este, por ter má conotação em Inglaterra ("Diabolic"), impediu a exportação do perfume para o Reino Unido? Que o programa "Onde está o Ás", de 1984, proposto por Udo Kruse e Miguel Oliveira para reavivar a Fórmula Ford em Portugal foi idealizado "num Domingo", conta "Kikas" Bessa, e que graças a ele venderam-se, desde logo, 24 mil unidades dessa fragrância? Ou que, pese o fiasco comercial ("a estes 24 mil frascos venderam-se outros dez mil das 100 mil unidades fabricadas", diz Miguel Oliveira), a Diabolique recebeu uma oferta de compra de stock e passou a constar das estatísticas como "os maiores exportadores de sempre" de perfumes portugueses? Fan-tás-ti-co. E só lhe estamos a aguçar o apetite.
Se há coisa que aprendemos desta experiência é que a educação é uma virtude injustamente menosprezada. Tivemo-la de sobra, da parte dos colecionadores e dos protagonistas, que nos receberam de braços abertos sem outro motivo que não a sua boa vontade e desvalorizaram, humildemente, a homenagem que lhes é merecida. Para "Kikas" Bessa, o sucesso da Diabolique foi apenas lógico: "Ele [Joaquim Santos] era o melhor, por isso andar à frente dos outros Escort era lógico, tal como foi perdermos para os Renault e para os Lancia, carros de outra geração. Quando tivemos o RS 200 ganhámos porque era um bom carro e portanto, mais até em função dos carros, nós conseguimos sempre cumprir com o que estava estipulado". Já para Miguel Oliveira, o sucesso e a paixão explicam-se da seguinte forma: "Tínhamos o melhor piloto, a melhor organização, os melhores pneus. Até tínhamos um homem, o António, para abrir rasgos nas borrachas de acordo com o piso. Depois, a minha mãe ia sempre com o "Kikas" Bessa e distribuía iogurtes e fruta até que começou a haver dinheiro a mais em jogo, apareceram as marcas e as coisas estragaram-se todas."
OS CARROS DA DIABOLIQUE
[https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliqueFordEscortRS2000_destaque2.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliqueFordSierraCosworth4x4.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliqueFordRS200.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliqueFordSierraCosworth.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliqueFordEscort.jpg,https://www.turbo.pt/wp-content/uploads/2024/03/DiaboliquePorsche911.jpg]Ao longo dos seus 10 anos de atividade, a Diabolique celebrou 39 vitórias e três títulos de campeões nacionais de ralis. Com 34 triunfos, a dupla Joaquim Santos/Miguel Oliveira ainda hoje é uma das mais vitoriosas da história da modalidade, um feito inacreditável tendo em conta a distância que nos separa de Outubro de 1990. Houve momentos bons e, como em todas as histórias, também os houve maus. O acidente no Rali de Portugal de 1986 assume-se como o mais doloroso, mas José Leite recorda que, mesmo então, nunca pensaram em terminar o projeto. A decisão de encerrar a equipa aconteceria quatro anos mais tarde, após mais um título perdido e a desilusão com o novo Sierra 4x4: "Mais do que um choque, foi uma tristeza muito grande. Sempre fomos muito bem tratados. Onde ficava o dono da equipa ficava a equipa toda. Jantávamos sempre juntos, portanto nunca houve separação. Ele sempre nos tratou como uma família. Mas o fim era previsível e foi o acumular de uma série de coisas. O nosso Sierra de 1987 era muito mau, em 1988 e 1989 tivemos problemas e depois veio aquela penalização que nos fez perder o campeonato. Em 1990 procurou-se, com um grande esforço financeiro e de todos nós, fazer um carro novo para tentar tudo. Mas depois não se via no horizonte nada de bom da Ford para o nosso campeonato e era o momento de parar. A concorrência estava a aparecer com carros melhores, estava a adivinhar-se a mudança de regulamentação e de evolução dos carros e a Ford não tinha nada, como não teve. E depois ele sempre teve o objetivo de parar aos 50 anos. Não me parece que tenha havido arrependimento porque foram também 12 anos de muitas alegrias e entre os 38 e os 50 preenche-se uma parte da vida. Mas dentro do carro dá para perceber o quanto ele ainda gosta. Ele diz que não, mas é mentira".