40 Anos quattro

A tração total permanente quattro é a imagem de marca da Audi, e tudo começou com a aposta no mundo dos ralis

Qualquer grande revolução tem um líder. No caso da Audi (e no universo do Grupo VW) há um nome incontornável: Ferdinand Piech. Membro do ramo austríaco da família Porsche, técnico experiente e apaixonado, acreditou no potencial da tração total permanente desenvolvida para o Iltis, pensado para o exército germânico, que veio a ganhar o “Dakar” em 1980. Esta história começou em Muonio, na Finlândia, a 150 km a norte do Círculo Polar, a base de Inverno do Grupo VW. Ali, um grupo de engenheiros validou o potencial do Iltis 4x4, em condições extremas. Entre eles estava Jörg Bensinger, responsável pelo desenvolvimento dos eixos de rodagem, que ficou extremamente entusiasmado com o comportamento do Iltis nas estradas cobertas de neve e gelo.

Nos anos anteriores já tinham surgido algumas tentativas para a realização de um automóvel com tração total permanente, mas nenhum dos projetos que foram surgindo por parte de diversos fabricantes tinha ultrapassado as dificuldades técnicas que a ideia comportava e o handicap do peso.

O entusiasmo de Bensinger cativou Ferdinand Piech, o então responsável pelo setor de Desenvolvimento Técnico da Audi. Por isso, ainda em 1977, um grupo de engenheiros foi reunido para avançar com o desenvolvimento da tração total permanente e surgiu uma “task force” que fez avançar a ideia: Bensinger, o mentor; Walter Treser, que assumiu a responsabilidade do projeto; e Ferdinand Piech, que o apoiou.

Sistema quattro

Nos testes, realizados em 1978 com o proto IN-NC 92, a eficácia da tração ficou desde logo demonstrada, mas em asfalto seco, sobretudo nas curvas mais apertadas, surgiam algumas tensões mecânicas. As rodas do lado exterior da curva tinham de percorrer uma distância superior às do lado interior, pelo que era fundamental que elas rodassem mais depressa, para garantir a agilidade e ultrapassar os problemas de subviragem. Esta situação não se colocou no Iltis porque a transmissão às quatro rodas podia ser desinserida, solução que a Audi não queria pois visava criar um veículo de tração total permanente. A solução foi dada por Franz Tengler, responsável pelo setor de projeto de transmissões: um veio secundário, na caixa de velocidades, capaz de transferir o binário do motor em duas direções. A extremidade posterior deste veio acionava o diferencial central, e o bloqueamento manual integrado na caixa transmitia, através de um sistema de cardans, 50 por cento da força motriz para o eixo traseiro que contava com o seu próprio diferencial. Os restantes 50 por cento eram transmitidos ao diferencial dianteiro por um veio colocado no interior do veio secundário. Esta solução permitiu realizar uma transmissão integral permanente, compacta, leve e bem-adaptada ao caráter desportivo.

O problema foi ultrapassado, mas não totalmente resolvido. O quattro era difícil de guiar. Por isso, a evolução continuou. Em 1983 a Audi registou a denominação quattro e criou a Audi Sport GmbH e no Salão Automóvel de Frankfurt apresentou o Audi Sport quattro, que começou a ser entregue a clientes em 1984. A sua história desportiva já estava afirmada e o Audi quattro era mais do que apetecível. A presença do Audi quattro no Campeonato do Mundo de Ralis foi, desde início, equacionada por Ferdinand Piech, que viu nesta disciplina (em fase de alteração regulamentar) o quadro ideal para afirmar a validade da tração total permanente.

Depois de ultrapassada a proibição que até aí bania os 4x4 do “Mundial” de ralis, a Audi estabeleceu um plano: em 1980 seriam realizados testes aturados com os primeiros protótipos da versão de ralis do quattro e, no ano seguinte, a equipa que então se formara (a Audi Sport), participaria num número selecionado de provas para preparar a presença no Mundial de 1982. Mas a “timeline” inicial foi antecipada graças ao bom desempenho do modelo desde os testes iniciais, e no Outono de 1980 o Audi parecia pronto, mas a marca de Ingolstadt não quis correr riscos.

Estreia no Algarve

Em 1980 a vitória de Franz Wittmann no Jänner Rali, disputado na Áustria, mostrou o potencial do Audi quattro em troços de neve e gelo e, no final do ano, os alemães negociaram com o Racal Clube de Silves a presença no Rali do Algarve, prova pontuável para o Campeonato da Europa, com o “Carro 0”. Desta forma, Hannu Mikkola/Arne Hertz puderam disputar as 30 classificativas, livres da regulamentação. Foram os mais rápidos em 24 delas e terminaram o rali com cerca de 27 minutos de vantagem sobre o vencedor oficial (Antonio Zanini/Miguel Oliveira), deixando de lado algum tempo excessivo nas assistências. Foi um ensaio geral sem precedentes na história dos ralis, mostrando que o Audi quattro estava pronto para a competição.

A homologação em Grupo 4 exigia a produção de 400 unidades, mas a Audi ultrapassou facilmente a questão com 14 000 unidades produzidas, onde foram surgindo inovações mais tecnológicas ao nível do diferencial ou mais específicas, como o roll-bar pensado para potenciar a rigidez estrutural, a adoção de painéis em alumínio e em kevlar, ou vidros em policarbonato para potenciar a relação peso/potência. A Audi conseguiu ganhar 200 kg face aos 1100 kg originais.

Em termos de motorização, o motor de cinco cilindros recebeu um compressor “KKK” de maiores dimensões e um permutador mais eficaz. A injeção Bosch K-Jetronic deu lugar a uma Pierburg e a Audi admitiu 360 cv de potência.

Do Grupo 4 ao B

No início dos anos 80 a Federação Internacional do Desporto Automóvel definiu um novo regulamento técnico para o Campeonato do Mundo de Ralis, criando o que viria a ser o Grupo B, um articulado bastante permissivo que abriu a porta à criação de verdadeiros protótipos, deixando livres os engenheiros que marcaram uma época que ainda hoje pode ser vista como a mais vanguardista da modalidade.

O ano de 1981 foi de transição, em que muitos equacionaram caminhos de acordo com o novo Grupo B. A Audi alinhou à partida de Monte Carlo e chegou a impressionar, mas problemas de juventude ajudaram ao triunfo de Jean Ragnotti com o R5 Turbo, mas o finlandês da Audi ganhou o Rali da Suécia e o RAC. Foi o piloto mais rápido ao longo da temporada, embora a fiabilidade o tenha impedido de ir além do terceiro lugar do campeonato. Terminou atrás de Ari Vatanen (Ford Escort) e Guy Fréquelin com o Talbot Sunbean Lotus de Grupo 2, que venceu o campeonato de construtores.

Mas o mediatismo da vitória de Michèle Mouton no Rali de Sanremo valeu quase um título. Foi a primeira mulher a ganhar uma prova do “Mundial” de Ralis e ajudou a fazer esquecer a desqualificação dos quattro no Rali da Acrópole, devido a alterações na zona frontal para potenciar a refrigeração e a alteração na colocação das baterias para melhorar a repartição de massas.

Walter Treser, como líder da equipa, foi demitido e substituído por Roland Gumpert.

Audi quattro A1 e A2

Fazendo jus ao lema da marca que apontava “vanguarda tecnológica”, a Audi preparou cuidadosamente o modelo que desenvolveu para o Mundial de 1982 com 380 cv onde Mikkola, Mouton e o sueco Stig Blomqvist ganharam sete das 11 provas do Campeonato do Mundo, oferecendo à marca de Ingolstadt o título de Construtores, num ano em que Michèle Mouton foi vice-campeã de pilotos, atrás de Walter Röhrl (Opel). Em 1993 o resultado inverteu-se. A Audi continuou a ser uma referência no campeonato, mas viu escapar-lhe a vitória de construtores, apesar de Hannu Mikkola se ter sagrado campeão de pilotos, com quatro vitórias.

O pleno 1984

Em 1984 surgiu finalmente o “pleno” com a vitória no Mundial de Construtores e no de Pilotos, graças aos cinco triunfos de Stig Blomqvist. A temporada começou da melhor forma, com a Audi a monopolizar o pódio no Rali de Monte Carlo, onde Walter Röhrl ganhou depois de um interessante duelo com os companheiros da sua nova equipa. Mas a concorrência era muito forte num ano em que a Lancia apresentou o 037 e a Peugeot avançou com o 205 T16, o primeiro automóvel de ralis com o motor colocado em posição central. Em face deste desafio, a Audi equacionou avançar no mesmo sentido, mas acabou por abandonar a ideia para não se afastar ainda mais da realidade dos automóveis de série. Contudo, no final de 1984 apresentou o Sport quattro, com uma distância entre-eixos reduzida (32 cm) e um potente motor dianteiro com 450 cv.

Mas o Sport quattro não estava fadado para garantir sucessos de grande monta, nem mesmo quando atingiu o seu último estádio de evolução: o S1. Seja como for, a sua tecnologia marcou uma época no Campeonato do Mundo de Ralis. O seu motor de cinco litros em alumínio debitava oficialmente 476 cv, mas com o sistema de circulação de ar, que fazia girar melhor o turbo, a potência deverá ter-se aproximado dos 500 cv. Com uma relação de transmissão intermédia, o S1 com os seus 1090 kg de peso, era capaz de passar de 0 a 100 km/h em 3,1 segundos.

Alguns destes modelos eram já equipados com a caixa de velocidades de dupla embraiagem, com origem na PDK dos Porsche 956/962 de Le Mans, e foram a génese da tecnologia DSG das transmissões atualmente disponibilizadas pelo Grupo VW. O S1 estava assente num chassis tubular. Contava com painéis de aço laminado e plástico. Para otimizar a repartição de massas o radiador, a ventoinha e o alternador estavam colocados na traseira. Grandes asas, tanto à frente como na traseira, asseguravam o apoio aerodinâmico e os travões eram refrigerados graças à pulverização de água.

Nova aposta

O fim da vida dos Grupos B com a sua tecnologia extrema aconteceu na Primavera de 1986 devido à alegada falta de segurança de tais veículos em provas de estrada e a alguns acidentes graves, como a morte de espetadores no Rali de Portugal, depois do acidente de Joaquim Santos com o Ford RS 200 Diabolique, ou a morte de Henri Toivonen na Volta à Córsega. A federação internacional decidiu alterar os regulamentos, baniu os Grupo B e adotou o Grupo A. A Audi e a Peugeot abandonaram o Campeonato, mas os alemães e depois os franceses, decidiram apostar numa corrida mítica americana: Pikes Peak, uma subida até às nuvens, disputada no Colorado. A Audi garantiu três vitórias no cume dos 4301 metros da rampa, que na altura ainda tinha piso de asfalto e terra. Michèle Mouton ganhou em 1985, Bobby Unser venceu em 1986 com o S1 e em 1987 Walter Röhrl afirmou a potência do S2, o mais potente dos quattro. Falou-se em 1000 cv e um dia perguntei a Walter Röhrl. A resposta foi simples: “Sei lá, era impressionante e se calhar era verdade...”